BOCAGE
Se é possível falar em um homem entre fronteiras, esse homem é Bocage: o das anedotas sujas e criações obscenas ao lado de poemas sensíveis, plenos de confissões amorosas, amargura e sofrimento, e mais: um homem situado entre dois mundos, entre as regras rígidas de um Arcadismo decadente, refletindo um mundo racional, ordenado e concreto, e a liberdade de um Romantismo ascendente, quando a literatura se abre à individualidade e à renovação. Bocage é um homem do seu tempo e à frente do seu tempo.
Esse é o tempo de Manuel Maria l’Hedoux Barbosa du Bocage, segundo filho do advogado José Luís Soares Barbosa e de Mariana Joaquina Xavier Lestof du Bocage, que nasce em Setúbal, em 15 de setembro de 1765.
Aos dezesseis anos, o jovem e brilhante Manuel Maria é já militar em sua cidade natal, trocando-a, em 1783, por Lisboa, ao alistar-se no corpo da Marinha Real. A idéia, entretanto, de um futuro promissor logo se desfaz em favor da sedução da ociosidade dos botequins e de uma vida de boêmia, por onde circulam fidalgos e frades alucinados, gente de vida fácil e amores incontáveis: de Marília, Tirsália, Jônia, Nise, entre outras, até chegar a Gertrude, a Gertrúria da Arcádia. É quando os poemas de especial sensibilidade surgem, lado a lado, com as improvisações não raro obscenas.
É por amor a Gertrude que, em 1786, Bocage parte para a Índia, com passagem pelo Rio de Janeiro. Vive dois anos em Goa, dois anos de grande decepção com a pior das terras, a que chama de esta república de loucos, de profundas saudades de Portugal, da margem deleitosa do Tejo e, sobretudo, de enlouquecedor ciúme de Gertrude
Em 1789, promovido a tenente de infantaria, é colocado em Damão, mas, apenas dois dias depois da chegada, deserta. E após um breve envolvimento com uma mundana famosa, Ana Jacques Manteguí, parte para Macau, quando conhece, ao lado da nostalgia da pátria, e da ausência de Getrude – Adeja, coração, vai ter aos lares,/ Ditosos lares, que Gertrúria pisa; [...] Dize-lhe, que do tempo o leve giro/ Não faz abalo em ti, não faz mudança,/ Que ainda lhe és fiel neste retiro – , a miséria.
Finalmente, em 1790, com 25 anos, Bocage consegue ajuda para regressar a Lisboa, onde a predestinação se confirma: vive a grande desilusão de encontrar a amada Gertrude casada com o seu irmão mais velho. Daí a retomar a vida boêmia e desregrada, entre botequins e tertúlias, foi apenas um passo.
A novidade fica por conta do ingresso na Academia Literária Nova Arcádia, cujos encontros são realizados nos salões da casa do conde Pombeiro. Não tarda, entretanto, para que essas quartas-feiras de Lerenosejam satirizadas pela irreverência do seu temperamento, e nisso Bocage é implacável. Primeiro, ataca seu presidente, depois, os seus pares mais notáveis; trava-se, então, uma verdadeira guerra verbal e os insultos beiram a obscenidade.
Em 1791, Bocage publica o primeiro tomo das Rimas, firmando a sua reputação poética, mas as composições satíricas e eróticas continuam a desferir profundos golpes na moral, na política e na religião vigentes. A situação torna-se insustentável, o poeta é expulso da Nova Arcádia e, três anos mais tarde, em 1797, é preso e processado pelas irreverências antimonárquicas e anticatólicas, acusado por conspirar contra a segurança do Estado e pela autoria de papéis ímpios, sediciosos e críticos. Primeiramente recolhido à cadeia do Limoeiro, é, depois, por influência de amigos e mediante muitas súplicas e retratações, transferido para o mosteiro de São Bento e deste para o mosteiro dos Oratorianos. Retira-se a acusação contra o Estado, permanecendo apenas contra a religião, o que é considerado um delito de menor gravidade.
O ano de 1799 marca o regresso do poeta à liberdade, quando se entrega ao álcool, ao tabaco e ao trabalho, publicando o segundo tomo de Rimas. Já, então, os excessos de toda a sua vida se fazem sentir e um aneurisma coloca-o, definitivamente, no leito. Em 1804, é publicado o terceiro volume de Rimas e, um ano mais tarde, em 21 de dezembro de 1805, aos 40 anos, Bocage morre em Lisboa. Diz-se que reconciliado com seus inimigos e com Deus, mas dificilmente reconciliado consigo próprio. Folgará de viver, quando não passa/ Nem um momento em paz, quando a amargura,/ O coração lhe arranca e despedaça?// Ah! Só deve agradar-lhe a sepultura/ Que a vida para os tristes é desgraça/ “A morte para os tristes é ventura”. Foi um desadaptado na vida e no tempo. O Elmano Sadino – este foi o pseudônimo adotado por Bocage na Nova Arcádia; Elmano é anagrama de Manoel, e Sadino, aquele que mora perto do rio Sado, que passa em sua cidade natal – é um romântico por temperamento.
Didaticamente apontam-se três fases para a poesia bocagiana: a da mentira arcádica, a da confissão amorosa escrita sob as regras árcades e a dos poemas curtos, de sofrimento e morte. Na verdade, as três se interpenetram. Pela capacidade, Manuel Maria du Bocage está à frente dos escritores do seu tempo, mas representa bem o Arcadismo pelo domínio do lirismo geral e amoroso de sua poética.
Embora dominasse as regras da poesia árcade, o temperamento irrequieto e insatisfeito de Bocage fez com que se afastasse dela quando quis. Na verdade, ele é a personalidade mais representativa de uma crise que, mais do que gosto e estilo, atinge o próprio teor da vida literária e os preceitos arcádicos e iluministas.
Homem de sentimentos desmedidos, irritadiço, insatisfeito com a ideologia político-religiosa, impulsivo e ciumento, Bocage projeta-se inteiro em sua criação. Cultiva a poesia satírica e a lírica, em forma de idílios, enaltecendo a vida rústica bem ao gosto árcade, odes, em que se destacam as dirigidas à Virgem Santíssima, epigramas, canções amorosas com excessivo apoio mitológico, cantatas, cançonetas, epístolas etc. São, entretanto, os sonetos o ponto mais alto da inspiração poética‚ o que melhor expressa a dimensão do talento e o que melhor evidencia a trajetória estética e humana de Bocage: dos preceitos árcades à liberação dos sentimentos reprimidos ou egotistas, coincidentes com um Romantismo em ascensão.
Ao longo dos sonetos, e há mais de 400, a par dos satíricos, existe um percurso definido cujo ponto inicial é marcado pela Arcádia e daí para a confissão amorosa e amarga, mas ainda presa à alegorização, à mitologia, à contenção racional, uma libertação que não é, enfim, total. Assim, pode-se dizer que predomina, no conjunto da obra, o impulso romântico sobre reminiscências neoclássicas, onde, via de regra, o poeta não consegue desvincular-se da fraseologia árcade e da influência camoniana.
Assim, se o entre-fronteiras é a marca de Bocage na história da Literatura Portuguesa, se sua poesia é o encontro que assinala a decadência de um estilo – árcade – e o limiar de outro – romântico –, o exercício da arte e a dimensão humana que daí avulta colocam esse criador de anedotas sujas e de poemas obscenos, nessa mesma história, como mestre do soneto ao lado de Antero de Quental e, enfim, como perseguiu a sua vida inteira, ao lado de Luís de Camões.
Texto da apresentação do livro O delírio amoroso, L&PM POCKET, por Jane Tutikian
Obras de Bocage
Cantiga à Morte de D. Inêz de Castro
O Triunfo da Religião
A Virtude Laureada
A Pavorosa Ilusão
Poesias
Elegia
Mágoas Amorosas de Elmano
Improvisos de Bocage
Convite à Marília
Pavorosa Ilusão da Eternidade
Pena de Talião
À Puríssima Conceição de Nossa Senhora
À Morte de Leandro e Hero
Queixumes do Pastor Elmano Contra a Falsidade da Pastora Urselina
O Triunfo da Religião
A Virtude Laureada
A Pavorosa Ilusão
Poesias
Elegia
Mágoas Amorosas de Elmano
Improvisos de Bocage
Convite à Marília
Pavorosa Ilusão da Eternidade
Pena de Talião
À Puríssima Conceição de Nossa Senhora
À Morte de Leandro e Hero
Queixumes do Pastor Elmano Contra a Falsidade da Pastora Urselina
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